Guardiões da agrobiodiversidade e aliados da conservação ambiental, indígenas mantêm cerca de 150 roças com mais de 30 variedades de plantas alimentícias cultivadas sem agrotóxicos nas tekoha. “Queremos plantar mais e reflorestar”, diz liderança
por Beatriz Drague Ramos
Na roça de João Cunumi Ramos, que abrange cerca de um hectare, vê-se uma colorida produção de milho, alface, mandioca, beterraba, banana entre outras hortaliças, frutíferas e grãos. É ali no quintal do ancião de 72 anos e da esposa Catalina Noceda de mesma idade, na Terra Indígena (TI) Tekoha Oco’y-Jakutinga, em São Miguel do Iguaçu, oeste paranaense, que o casal cultiva diversas espécies de plantas alimentícias há pelo menos 40 anos – desde que vieram da tekoha Jakutinga para a Oco’y graças aos alagamentos provocados pela construção da Usina Hidrelétrica (UHE) Itaipu (1975-1982).
Agora, os avós de 34 netos estão diversificando o cultivo com a plantação de novas espécies. “Estou experimentando as hortaliças, porque gosto de colocar a mão na terra. Também faço chás, as pessoas já levam pronto daqui. Têm arruda e plantas do mato, cascas e raízes, que servem para cólicas, dor nas costas, pressão alta e diabetes”, conta João, dentro da casinha de madeira, em um dia chuvoso na aldeia – que atualmente consta no banco de dados da Fundação Nacional do Índio (Funai) como uma Reserva Indígena.
Segundo ele, o milho e o feijão são plantados de setembro a outubro, no entanto, a intensificação das mudanças climáticas tem atrasado o início do plantio. “O último mês para plantar é em dezembro, mas depende do tempo, cada ano muda o clima, ano passado eu plantei mandioca mas perdi”.
A farta variedade de alimentos produzidos pelo casal faz parte das cerca de 150 roças tradicionais do povo Avá-Guarani cultivadas no oeste do Paraná, como explica Erison de Jesus Moreira, 36 anos, que é parceiro da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) e assessor do Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia (CAPA).
São, segundo Erison, mais de 30 variedades de cultivares que fazem um verdadeiro contraste ao cenário de monocultura da soja, do milho e da pecuária limítrofes às tekoha Oco’y, Yva Renda, Tape Jere e Aty Mirim, percorridas pela reportagem.
Geração de renda
Apesar dos impactos dos agrotóxicos e do espaço pequeno de 231 hectares divididos por aproximadamente 210 famílias e 839 pessoas, os Avá-Guarani que vivem em Oco’y estão resistindo e iniciaram em outubro de 2022 o plantio de oito hectares de mandioca orgânica e certificada, que tem como destino a exportação para os Estados Unidos e países da Europa no próximo ano. O projeto é uma parceria dos Avá-Guarani com a empresa Biorgânica e com o CAPA, cujo objetivo é produzir para a exportação cerca de 30 toneladas de mandioca, por safra anual.
A princípio, a iniciativa beneficiará cinco famílias e uma delas é a família de João Ramos. “Estou com muita expectativa de plantar a mandioca, por mim já tinha plantado”, diz o ancião, que contará com um mutirão da família para dar conta da plantação. “Vou deixar o plantio mais para meus filhos, faremos um mutirão. Agora planto verdura, milho e feijão e estou deixando espaço para a mandioca.”
Assim como João, o preparador de solo da aldeia Oco’y, Mariano Peres, 40 anos, também está animado com o projeto e parte de seu terreno será destinado ao roçado de mandioca. Pai de seis filhos, Mariano avalia que o plantio também será uma oportunidade de complementação de renda. “Eu fico feliz porque eu também vou plantar e o dinheirinho vai ajudar. Achei bacana, achei bom, vai ajudar a comunidade.”
Há cinco anos, Mariano prepara mais de 50 hectares de terra da Oco’y por ano com o auxílio de um trator doado pela prefeitura de São Miguel do Iguaçu (PR). “Com o trator as roças com fogo diminuíram muito, o que é melhor, porque não corremos riscos de acidentes”, diz.
Ele explica que primeiro é passada uma grade pesada, para moer detritos maiores na terra, na sequência é passada uma outra grade mais leve na terra para nivelar o terreno. Além da mandioca, na roça de Mariano são cultivados milho, batata doce, feijão e melancia. “A germinação da semente de melancia demora cinco dias e para colher são 70 a 80 dias”, conta com timidez.
Essa será a primeira experiência da comunidade com a exportação de mandioca cultivada dentro da aldeia depois que a Cooperativa LAR parou de comprar e comercializar internamente a mandioca produzida pelos indígenas em 2019, conforme explicou Celso Jopoty Alves, 32, coordenador estadual da CGY do Paraná. “Aqui no município tínhamos uma fecularia que pegava a mandioca e a gente já estava plantando para a venda. Na pandemia ela fechou e depois disso não plantamos mais para vender porque a mandioca tira espaço.”
A liderança vê o novo projeto com muita esperança. “Essa aldeia pode ser um exemplo para o cultivo da mandioca. Aqui sempre plantamos, vai ser bom para cada agricultor. A maioria que está plantando consome, mas a maioria também quer uma renda, tanto da mandioca, como do milho. Acho que vai ser bem legal para a comunidade, temos uma expectativa grande de aumentar a cada ano. Vamos mostrar que a gente também consegue produzir e mandar para eles comerem.”
Autonomia alimentar
A batata, o feijão de corda, a mandioca, o milho e a abóbora também fazem parte das roças de Dino Tupã Benite, 75 anos, e de sua vizinha Livrada Kunhanhemborari Ju Barrios, 64 anos, ambos também tem o costume de criar aves como galinhas e patos em seus quintais, assim como grande parte dos moradores da aldeia.
“A família vem atrás para conhecer. Mostro como preparar, como escolher e como plantar. Até quando puder vou fazer”, diz Dino, que completa afirmando que não há segredo no manejo dos cultivares. “Depende mais do clima para desenvolver bem. O milho, feijão de corda, batata doce, mandioca, tudo já foi plantado, vou colher em fevereiro”, explica.
“Tenho a carteirinha de agricultor familiar desde 2008”, contou orgulhoso Cecílio Benite, 50 anos logo no começo da nossa conversa. O agente de saneamento básico da aldeia Oco’y é categórico ao afirmar que, em sua cultura, o plantio e colheita tem a ver também com a independência dos indígenas dos modos de produção capitalista. “Eu não dependo de ninguém! É minha cultura! Sem plantar a gente não é nada. Ainda mais o pobre, tem que plantar mandioca, milho. Até arroz eu tenho a semente. Ficar sem alimento a gente não fica”, salienta.
Com a produção de alimentos na roça, a esposa Vitorina Perez, 55 anos, consegue preparar marmitas, que são comercializadas na comunidade. “O pessoal pede nos grupos de WhatsApp. Na roça tem bastante esse tomatinho cereja e eu crio bastante galinha, porque já ajuda na casa também um pouco, mais pra consumo do que pra vender”, diz ela.
A casa de Vitorina e Cecílio está separada por pouco mais de 10 metros de uma lavoura de soja, por conta disso, o contato com agrotóxicos é inevitável. “Tem dia que nem dá pra jantar por causa do veneno, o pessoal tem dor de barriga”, conta a cozinheira.
Ainda assim, o casal persiste e segue plantando com a doação de sementes de instituições como a CGY, CAPA e o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), de forma que a variedade de espécies vem se ampliando ano a ano. Entre fevereiro e setembro de 2022, só a CGY disponibilizou às aldeias da região cerca de 700kg de sementes nativas de 24 diferentes variedades, além de 4000 mudas de abacaxi e caixas de meliponicultura.
“Quando tem terra tem que aproveitar e enquanto tem saúde, é isso que eu estou fazendo, para mim não tem feriado, sábado e domingo eu planto. Durante a semana eu trabalho no saneamento e sábado e domingo planto e limpo a roça”, diz Cecílio.
Uso medicinal e ritual de plantio
As mudas de abacaxi, milho, assim como os pés de bananeiras, amora e as plantas medicinais estão dentro de uma mata praticamente fechada próxima a casa da zeladora escolar, Crispina Ramos, 35. Lá ela conserva suas espécies no modelo agroflorestal, um tipo de plantio de alimentos sustentável capaz de recuperar a vegetação e o solo. “Tem mandioca, feijão, milho, banana. Primeiro limpamos e depois plantamos as sementes”, conta.
De forma geral o plantio é feito manualmente, ou com a ajuda de uma ferramenta chamada sarakua, na linguagem Guarani. “Joga a semente no chão, faz um furo na terra e cobre.”
Além do plantio para a alimentação, o espaço próximo à casa de Crispina conserva uma grande variedade de plantas medicinais. “Usamos amora branca pra ferida na boca. A pata de vaca é remédio para o rim. A Espinheira Santa é mais difícil de achar, mas é usada para cólica. Primeiro limpamos e depois plantamos as sementes.”
Segundo ela, o uso dos chás para aliviar sintomas auxilia toda a comunidade. “Se as crianças estão com diarréia, vômito, a gente não precisa levar médico, a gente sempre usa o chá, distribuímos na comunidade toda. No mato a gente não acha mais, temos que plantar e cuidar para a gente ter.”
Nesse sentido, Leandra Rete Lopes, 35, lembra que a saúde do povo Avá-Guarani se deve ao consumo de alimentos cultivados sem agrotóxicos. “O nosso alimento é adubado naturalmente, usamos o resto das frutas.”
Além do cultivo para o consumo, medicinal e geração de renda, determinados alimentos, como o milho, são fundamentais para os rituais dos Guarani, como aponta Livrada. “Com o branco fazemos farinha e com o amarelo dá pra fazer a bebida sagrada que a gente toma na casa de reza.
A chicha, ou kaguῖ, bebida fermentada de milho consumida na casa de reza, faz parte do ritual de batismo do plantio feito cerca de duas vezes por ano, explica Celso. “Antes do plantio batizamos a semente e depois para colher também, com milho, mandioca e feijão. Qualquer planta para consumo levamos na casa de reza para fazer o batismo.”
O último ritual de plantio foi feito no início de 2022 e também no meio, em julho, conta o representante da CGY. “E quando está pronto pra colheita o pessoal leva o plantio deles na casa de reza e pendura na frente pra fazer batismo. Isso é tradição”, complementa.
Guardiões da agrobiodiversidade
A produção agroecológica aliada à preservação da natureza é uma das principais características das roças cultivadas pelos Avá-Guarani, afirma Erison, que trabalha junto aos indígenas há três anos. “É uma produção alinhada com esse objetivo de plantar sem veneno, uma produção agroecológica sem contaminar rios e florestas, até porque eles têm essa preocupação com as crianças, de elas poderem pegar uma fruta tranquilamente em uma árvore sabendo que não é contaminado por agrotóxicos, por exemplo.”
A produção das famílias que hoje estão produzindo na Oco’y é diversificada, diz Erison, que vem prestando apoio técnico às famílias nos plantios das roças e também nos sistemas agroflorestais (SAFs). “Conseguem produzir milho, feijão, mandioca, batata-doce, algumas famílias vem produzindo as hortaliças, o que não é um costume da tradição Guarani e inserindo esses alimentos no seu hábito alimentar. Então, vem havendo uma diversificação maior na produção.”
“Nossa produção sempre foi boa, mesmo com a aldeia pequena”, exalta Leandra. “Eu dou parabéns aqui na minha aldeia! Tem pessoas que estão se esforçando, estão trabalhando e na pandemia distribuímos alimentos nas outras aldeias.”
De acordo com ela, as trocas de sementes e de mudas são frequentes entre as comunidades indígenas da região. “Não temos falta de semente, compramos o milho roxo da outra aldeia. A batata, a mandioca, isso nós ainda estamos mantendo.”
Retomadas: Yva Renda, Aty Mirim e Tape Jere Guarani
A busca por mais espaço e o encontro com o território ancestral foi o que motivou parte dos indígenas Avá-Guarani a buscarem a retomada de outras terras também no oeste paranaense. Antes concentrados na aldeia Oco’y após a construção da UHE Itaipu, cerca de 17 famílias passaram a viver em uma Área de Proteção Permanente (APP) do reservatório de Itaipu há cerca de seis anos e a nova aldeia , chamada Yva Renda, sofre constantes pressões de reintegração de posse.
Cercados por plantações de soja, tabaco e milho, os indígenas tentam cultivar seus alimentos e conquistar alguma segurança jurídica para permanecerem no local sem ameaças. “A maioria dos brancos falam que estamos invadindo a área, mas não estamos, somos moradores antigos dessa região”, diz o líder da comunidade Oscar Benites Lopes, 59 anos.
“A gente pensava: como é que a gente podia sobreviver? Onde era a nossa pesca, a nossa casa de reza, onde moravam os nossos parentes, então nos unimos para pensar o que poderíamos fazer e decidimos que seria melhor voltarmos para onde morávamos”, complementa.
Apesar do espaço pequeno, que sofre com o alto uso de agrotóxicos nas lavouras do entorno, são produzidas na aldeia hortaliças como repolho e cebola, além de milho e mandioca divididas em cerca de quatro roças, como mostrou Oscar.
“Tentamos continuar plantando para não perder a semente. Não estamos pensando em dinheiro, a gente quer manter nossa vida, aumentar a floresta, para conseguirmos mais remédios naturais, queremos plantar mais e reflorestar, mas o branco o empresário derruba aqui pelo dinheiro, por isso que sempre que aparecem pessoas das organizações, a gente pede mais árvores, plantas medicinais e frutas, isso é vida para nós”, diz ele.
Localizada no município de Santa Helena, a tekoha Tape Jere Guarani abriga atualmente cerca de 10 famílias com 27 pessoas e o território foi retomado há cinco anos. “Resolvemos fazer uma retomada, estamos lutando pela demarcação até hoje”, diz Lino Cesar Conomi Pereira, 46, presidente da Comissão Tape Rendy Avaete. O local, segundo ele, conta com dois mil metros quadrados de plantio.
“Aqui a gente não consegue produzir muita coisa porque estamos na reserva da Itaipu, mas temos a mandioca e a batata doce, sem desmatar. Estamos lutando para ter espaço para plantar. É difícil até para recebermos sementes”, conta enquanto caminhamos pela aldeia.
Diante disso, é preciso que o governo federal e estadual apoie os indígenas, aponta Erison que também presta suporte técnico às retomadas. “Os governos teriam que ter políticas voltadas para o fortalecimento da produção agrícola orgânica nas comunidades, facilitando o acesso de aquisição de maquinário e de sementes, para a melhoria da produção visando o sustento das famílias. Além disso, é preciso demarcar as áreas.”
Procurada, a Funai não se manifestou sobre as ações voltadas ao fortalecimento da alimentação dos indígenas e nem sobre uma possível regularização dos territórios ocupados.
A busca por uma maior produção na terra também fez com que 38 famílias saíssem da tekoha Oco’y e retornassem à tekoha Aty Mirim em fevereiro de 2015. Hoje a aldeia, que fica em Itaipulândia, conta com 63 famílias e está localizada em uma área preservada do Governo do Estado cedido, desde 2008, ao Instituto Agronômico do Paraná (Iapar).
“Não queremos perder a cultura nossa e daí a gente se organizou e fez uma retomada. A terra significa tudo pra gente, sobre a nossa organização política, nossa cultura, nossa sobrevivência”, relata a liderança da aldeia Natalino Almeida Peres, 44 anos.
A área de plantio da aldeia tem cerca de sete alqueires, diz ele. “Estamos tentando manter cada um tem seu pedacinho, com mandioca, milho, feijão, amendoim, batata-doce e os pequenos animais, como porco, galinhas e patos.” Ainda assim, a complementação alimentar é necessária, feita atualmente com a doação de 43 cestas básicas mensais da prefeitura e compras em supermercados.
A produção de alimentos se dá pela qualidade e claro, pela tradição, conclui Natalino. “Produzir um alimento sem agrotóxico é o melhor que a gente tem, então estamos trabalhando juntos. A produção de alimentos surgiu da população indígena, a nossa população já nasce com o conhecimento de produção de alimento saudável de geração em geração.”