Ao longo das últimas semanas, nossa comunidade vêm sofrendo uma série de ataques por parte de organizações que se dizem defensoras do meio ambiente. Ataques que vêm sendo motivados pela assinatura de um termo de compromisso que assinamos junto ao ICMBio e que prevê a gestão compartilhada da área da Reserva Biológica Bom Jesus que se sobrepõe ao nosso território tradicional. Cansados de apenas ouvir as falsas acusações que vem sendo feitas, resolvemos escrever essa carta, contando nossa história verdadeira e buscando reforçar nossa aliança com aqueles não indígenas que realmente ainda podem ser aliados na luta pela proteção de nossa floresta.
Nossa comunidade fica localizada onde hoje se encontram os municípios de Antonina e Guaraqueçaba no litoral do Paraná. Um lugar que já era habitado por nossos antepassados desde antes da invasão deste continente pelos não indígenas. Trata-se de uma região sagrada para nós, na qual nosso povo se manteve presente ao longo dos séculos apesar das diversas tentativas de expulsão que sofremos por parte dos não indígenas, que denominamos jurua. Foi aqui que nossos bisavós e nossos avós viveram.
Ao longo do século XX, contudo, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que supostamente foi criado para defender nossos direitos, passou a nos expulsar de nossas aldeias localizadas na região do litoral e a concentrar nosso povo nas chamadas reservas indígenas. Nesses lugares, nosso povo passou por trabalhos forçados, prisões e torturas. Obrigavam-nos a derrubar as matas e a plantar grandes monoculturas. Assim, por meio da violência os jurua roubavam nossas terras e buscavam matar nossa cultura.
Foi nesse contexto que nossa geração nasceu. Mas, apesar de tudo isso, nossos avós ainda nos ensinaram sobre nossa cultura e sobre o grande respeito que temos pelas matas e seus seres. Eles nos lembravam com carinho dessa região na qual haviam nascido e sempre buscavam visitá-la, escapando ao autoritarismo do chefe do posto indígena que controlava cada entrada e saída da reserva.
Em 2012, então, retornamos a esta terra. Foi uma longa caminhada cheia de dificuldades. Mas, graças a Nhanderu e aos espíritos que nos guiavam, pudemos finalmente chegar nesse local sagrado no qual viveram nossos antepassados. Foram eles que nos trouxeram até aqui. Eles nos deram essa missão: de viver nessas matas e protegê-las.
Nós conhecemos cada pedaço do nosso território. Sabemos por onde circulam cada um dos animais que moram nele e as ameaças que eles enfrentam. Nós andamos todos os dias por essa floresta buscando proteger ela como Nhanderu nos ensina para que nossos filhos e netos possam seguir vivendo bem, junto às matas de acordo com o nosso nhandereko, o nosso modo de vida tradicional. Quando chegamos aqui, a região ao redor de onde se encontra nossa aldeia estava repleta de caçadores e palmiteiros. Nós conversamos com eles, explicamos que ali era nosso lar e que aquelas matas precisavam ser protegidas. E eles se retiraram dali. É assim que trabalhamos para manter essa floresta em pé, para que nossos filhos, e os filhos dos jurua, possam seguir existindo nesse mundo.
Pouco depois de nosso retorno, entretanto, a Reserva Biológica Bom Jesus foi criada em cima de nosso território tradicional sem que fôssemos consultados. Passamos então a ser perseguidos pelos gestores do parque, tratados como invasores em nossa própria terra. Tratados como ameaças à Mata Atlântica na qual nossos parentes sempre viveram e a qual temos como missão defender.
Apesar disso, sempre buscamos manter o diálogo com os jurua responsáveis pela gestão deste parque. Isso porque nosso povo dá muito valor às palavras e, vendo nossas matas serem tão destruídas ao redor, nos parecia muito importante buscar a parceria e não o conflito com aqueles jurua que diziam que estavam lá para proteger a floresta.
Assim, depois de anos de diálogo junto ao ICMBio, conseguimos formular esse documento, chamado Termo de Compromisso. Nele tentamos traduzir para vocês jurua um pouco dos nossos conhecimentos em relação à floresta e a nossa forma de manejá-la e protegê-la. E para nós foi uma grande conquista que, pela primeira vez, um documento desses levasse em conta nossos saberes. Uma esperança de que juntos, indígenas e ambientalistas, pudessem de fato somar seus conhecimentos e experiências na defesa do nosso território.
Assim, ficamos profundamente espantados e tristes quando começamos a receber novamente acusações de que nossa presença em nosso território tradicional estaria colocando em risco nossas matas e os animais que nelas habitam. E isso, novamente, por parte de organizações que afirmam defender o meio ambiente.
Para nós, cada bicho, cada planta ou rio possui um espírito protetor. Eles são seres como nós que precisam ser respeitados. Assim, nós nunca caçamos na época em que os animais se reproduzem ou que ainda estão pequenos. E, sempre antes de entrar na mata, pedimos licença para esse espírito dono. Quando algum animal é caçado, ele tem que ser benzido com cuidado e sua carne tem que ser consumida na hora pela comunidade. A venda de animais caçados, assim, é estritamente proibida entre nós.
Ao longo das últimas décadas, contudo, em função da grande destruição que vocês, jurua, impuseram a Mata Atlântica, temos visto diversos bichos que antes encontravam-se em abundância passarem a se tornar cada vez mais raros e ameaçados. Por conta disso, nós mesmos passamos a caçar cada vez com menos frequência, preocupados em garantir que esses animais sigam existindo. Privados de nossas matas, hoje em dia nossa alimentação depende cada vez mais dos produtos comprados nos mercados da cidade.
A caça, contudo, tem uma importância simbólica enorme para nós. Pois é também por meio dela que ensinamos nossos filhos sobre como ser Guarani. Sobre a época certa de caçar e os cuidados que devem ser tomados. Sobre os animais que podem e que não podem ser caçados. Sobre como fazer cada armadilha e a partir de que materiais. Sobre como as diferentes partes de cada animal devem ser divididas entre cada membro da comunidade. Sobre quais as regiões da floresta que se pode e que não se pode caçar e as características de cada uma. É assim que ensinamos, portanto, sobre nossa floresta, nossa cultura e a relação de respeito que temos com os diversos seres que habitam as matas.
Apesar disso, buscando mais uma vez o diálogo com vocês, jurua, e após conversa realizada com o gerente regional do ICMBio, em conjunto com a Coordenação Técnica Local da FUNAI, resolvemos concordar em suspender temporariamente a pouca atividade de caça que fazemos em nosso território. Esperamos, assim, poder contribuir na construção de um sistema de monitoramento de fauna junto ao ICMBio nos próximos meses para que, em breve, todos possam ver que nossa presença não tem trazido qualquer ameaça para a fauna e que, pelo contrário, temos sim ajudado na proteção dos animais que vivem em nosso território.
Para nós, indígenas, a palavra vale muito. E gostaríamos que vocês realmente acreditassem que o que falamos é verdadeiro. Mesmo sem acreditar nas nossas palavras, entretanto, qualquer um que queira se informar pode hoje encontrar diversas pesquisas que comprovam que o que dizemos é verdade. Pois não faltam artigos produzidos por cientistas não indígenas e publicados nas revistas mais prestigiadas dos jurua que mostram que hoje as Terras Indígenas são as áreas mais protegidas no Brasil. Que a presença de nossas comunidades inibe invasões e que o avanço nos processos de demarcação tem freado o desmatamento e até colaborado na recuperação das florestas.
Assim, mesmo alguns órgãos que antes se opunham aos nossos direitos, tem reconhecido a importância de nossas terras e de nossos saberes. É o caso da Fundação Florestal, responsável pela gestão dos parques do estado de São Paulo. Por anos, esse órgão também perseguiu nossas comunidades que se encontravam em áreas sobrepostas aos parques estaduais. Hoje, contudo, depois de anos de discussão, a Fundação reconhece a importância de nossos saberes na proteção desses locais e tem, inclusive, apoiado projetos junto às nossas comunidades voltados para proteção e recuperação ambiental desses locais. Em apenas um ano de projeto, nossos parentes puderam percorrer centenas de quilômetros monitorando invasões de caçadores e palmiteiros nas regiões de suas TIs sobrepostas aos parques, assim como realizar atividades de eliminação de espécies exóticas e reflorestamento com árvores nativas. Ações que fortalecem nossas florestas e que só foram possíveis graças à parceria e colaboração entre nossas comunidades e o órgão ambiental.
Todas essas pesquisas e informações são públicas e deveriam ser já de conhecimento dessas organizações que se dizem ambientalistas. Assim, só podemos compreender como um ato persistente de racismo a perseguição que essas entidades realizam contra nossas comunidades. Racismo que fica ainda mais evidente quando vemos que, enquanto atacam vigorosamente nossa proposta de gestão compartilhada, essas mesmas organizações parecem se calar diante dos grandes empreendimentos que vêm sendo realizados em nossa região e impactando severamente nossas florestas. Empreendimentos que têm como principal função aumentar ainda mais a exportação de soja ao redor de nosso litoral. Soja que vem da derrubada de nossas florestas e do sangue de nossas comunidades na região do Mato Grosso do Sul, no Interior e Oeste do Paraná.
É essa a nossa história verdadeira. E é ela que gostaríamos de contar para vocês. Para que aqueles que realmente se preocupam com nossas florestas possam se aliar a nós e para que juntos possamos enfrentar, com mais força, os projetos que realmente estão ameaçando nossas comunidades e a Mata Atlântica.
Aguyjevete,
Comunidade da Terra Indígena Kuaray Haxa