Ação pede reparação de violações de direitos humanos e fundamentais das comunidades avá-guarani afetadas pela hidrelétrica, mas até hoje (10/3) os indígenas não eram reconhecidos como parte no processo
Por Assessoria jurídica da CGY
As comunidades avá-guarani as Terras Indígenas Tekoha Guasu Guavira e Tekoha Guasu Ocoy Jakutinga receberam uma boa notícia do Supremo Tribunal Federal (STF): entraram como parte no processo que discute medidas de reparação histórica ante às violências praticadas por Itaipu Binacional com a implementação da Usina na região, a Ação Civil Originária (ACO) 3555.
Em decisão proferida nesta sexta-feira (10), o ministro Dias Toffoli reconheceu a legitimidade conferida pela Constituição em seus artigos 231 e 232 às comunidades indígenas para participarem do caso com advogadas e advogados próprios. O pedido de ingresso foi assinado pela assessoria jurídica da CGY, e vinha sendo analisado pelo STF desde maio do ano passado. Nas palavras do ministro, os dispositivos constitucionais tornam “inafastável” a conclusão da legitimidade processual das comunidades indígenas, na medida em que são titulares do direito originário sobre as terras que são objeto da ação (confira íntegra da decisão aqui).
Além do ingresso das comunidades avá-guarani, a peça da CGY enumera uma série de pedidos, que ainda aguardam análise no tribunal. Sobre elas, o ministro relator entendeu que, antes de apreciá-las, seria conveniente remeter os autos do processo à Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal da Advocacia-Geral da União (CCAF/AGU), por onde ficaram por 120 dias para a busca de conciliação.
O povo Avá-Guarani e a UHE Itaipu Binacional
As comunidades avá-guarani no oeste do Paraná somam atualmente 4 mil indígenas em 24 tekoha, aldeias compreendidas nas Terras Indígenas Tekoha Guasu Guavira e Tekoha Guasu Okoy Jakutinga, nos municípios de Altônia, Guaíra, São Miguel do Iguaçu e Terra Roxa. Historicamente, esses grupos foram invisibilizados, e sistematicamente alvos de violências físicas, psicológicas, simbólicas e patrimoniais, com participação direta de entes públicos, dentre os quais a usina.
A UHE Itaipu Binacional foi implantada em território guarani na região da tríplice fronteira Argentina-Brasil-Paraguai na década de 1970, no período das ditaduras latino-americanas, e no momento de recrudescimento da repressão brasileira após o Ato Institucional 5 (AI-5), de 1968. O empreendimento, que já foi a maior usina hidrelétrica do mundo, pretendeu atender aos anseios políticos e econômicos governamentais, servindo também para consolidar o controle territorial pelos estados na região, no marco da doutrina de segurança nacional.
A implementação de Itaipu, na segunda metade do século XX, consolidou um processo histórico de esbulho territorial, expulsões e violências praticadas contra as famílias avá-guarani. Para instalar a usina, sem qualquer protocolo de consulta, além da inundação de aldeias inteiras, foram realizadas remoções forçadas e expulsões de sobreviventes e resistentes e incêndio de suas habitações. Além de Itaipu, também a Funai, o Incra e o Governo do Paraná tiveram uma atuação coordenada, valendo-se expedientes fraudulentos para invisibilizar a presença indígena na área, como os as certidões negativas, “os critérios de indianidade”, loteamento indevido de terras indígenas e a subestimação da população atingida, restringindo, assim, o acesso dos avá-guarani a justas reparações, motivos pelos quais também são citados no pedido de ingresso da CGY.
Os danos causados por Itaipu ultrapassam as violências praticadas no período de sua implantação, contribuindo para a construção de uma narrativa anti-indígena de viés verdadeiramente racista com o qual as comunidades na região são tratadas até hoje. São alarmantes os casos de perseguição a lideranças, crimes de ódio, discriminação, proibição de acesso a serviços, restrição de circulação em espaços determinados, entre outras violações de direitos, que agravam a situação de vulnerabilidade social das famílias que enfrentam barreiras à qualidade mínima de vida e dignidade da pessoa humana em seus próprios territórios de ocupação tradicional. Em 2017, a CGY publicou um relatório com registros do panorama dramático dessas violências a partir de depoimentos e materiais reunidos pelos próprios avá-guarani.
Um dos efeitos cruéis desse processo é o alto índice de suicídios entre jovens indígenas, que atualmente tem caráter de epidemia. Em ofício à Procuradoria-Geral da República (PGR), autora da ACO 3555, a CGY enviou uma lista atualizada dos episódios de suicídio ocorridos desde a última manifestação no processo, em maio de 2022.
O caso dos Avá-Guarani com a Itaipu já foi relatado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) e pela Comissão Estadual da Verdade do Paraná “Teresa Urban” (CEV-PR), que em seus relatórios finais circunstanciaram os episódios de violência com fartas provas documentais, bem como na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Cidh). A própria PGR passou pelo menos dez anos em investigações de campo via um inquérito civil.
A ACO 3555 no STF
A Ação Civil Originária (ACO) 3555 foi ajuizada pelo Procurador-Geral da República (PGR) Augusto Aras em 2021, em substituição à ação movida dois anos antes por sua sucessora, Raquel Dodge, sob a alegação de suposta “superficialidade documental” na peça original, que foi extinta. Na época, tanto os avá-guarani, quanto o Ministério Público Federal, por meio de sua 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (6ª CCR/MPF), tentaram reverter o arquivamento da ação, sem sucesso, tendo o pedido negado pelo ministro Alexandre de Moraes.
A ação atual proposta por Aras tem por objetivo promover reparação aos avá-guarani no lado brasileiro por violação de direitos humanos e fundamentais que causaram danos materiais e morais às comunidades das Terras Indígenas Tekoha Guasu Guavira e Tekoha Guasu Okoy Jakutinga.
Em maio de 2022, as comunidades avá-guarani enviaram ao STF um requerimento de ingresso no processo e pedidos complementares visando à responsabilização de Itaipu Binacional, da União, da Funai, do Incra e do Governo do Paraná. A resposta do tribunal ao pedido de ingresso viria apenas em março deste ano, com decisão do ministro relator Dias Toffoli, admitindo-as como parte na ação e remetendo o processo para as vias de conciliação (relembre o momento do pedido de ingresso).
A decisão favorável de Toffoli ocorre semanas após a visita de uma comitiva de lideranças ao seu gabinete no SFT realizada em fevereiro, no âmbito da agenda de incidências da Campanha #DemarcaYvyrupa (conheça aqui).
Esta é, certamente, uma vitória para as comunidades avá-guarani, porém não deixa de ser o mínimo, assegurado pela Constituição em seu artigo 232, que reconhece a personalidade jurídica dos povos indígenas e suas organizações, ou seja, que são partes legítimas para a defesa de seus direitos e interesses na via judicial. Com esta boa decisão no Supremo, as comunidades poderão a partir de agora apresentarem por si sua versão e seus pedidos, em eventuais tratativas de conciliação futuras.
De todo modo, dentro e fora do judiciário, o povo Guarani continuará lutando por seus direitos à vida e a seus territórios.
Saiba mais
40 anos de Itaipu: Avá Guarani lutam para contar ao STF sua versão sobre impactos da usina – Beatriz Drague Ramos / CGY, Brasil de Fato
AVÁ-GUARANI: a construção de Itaipu e os direitos territoriais – MPF
Atlas do desterro Oco’y-Jakutinga – Autônoma